À data de escrita deste artigo, as Nações Unidas (ONU) contabilizam 193 estados-membros, número frequentemente utilizado por alguns viajantes para quem o número de países visitados equivale a uma espécie de medalha ou prémio de um qualquer jogo de “coleccionar países”.
Acontece que, como em muito do que envolve política e diplomacia, as coisas não são lineares, e a criação artificial de fronteiras e passaportes faz com que surjam “bugs” no sistema. Isto faz com que existam vários estados (e microestados) apenas parcialmente reconhecidos e que, por isso, podem ser considerados como “quase-países”.
Neste artigo, que não se pretende exaustivo, apresento alguns dos que mais curiosidade me despertam, e que – ao contrário do meu último artigo – podem efectivamente ser visitados, assim permitam as restrições da pandemia actual e a diplomacia internacional.
11 “quase-países” que podes visitar:
Transnítria
Oficialmente conhecida como República Moldava Pridnestrovian, é um dos mais singulares “quase-países” desta lista. Visitá-la é quase como viajar atrás no tempo e descobrir “os últimos remanescentes da URSS”: na capital Tiraspol é comum encontrar várias estátuas de Lenin e outras lembranças do antigo regime soviético.
O nome Transnístria significa literalmente “além do rio Dniestre”. Esta estreita faixa de terra situada entre a Ucrânia e a Moldávia tem as suas próprias fronteiras, passaportes, bandeira, moeda e dia da independência. No entanto, embora tenha unilateralmente declarado a sua independência em 1990 com a ajuda de russos e cossacos, este território apenas é reconhecido por outros três estados auto-proclamados e não-reconhecidos: Abecásia, Artsaque e Ossétia do Sul.

Universidade de Dubăsari, Transnístria (Créditos: Clay Gilliland)
Como chegar? Há autocarros, marshrutkas (carrinhas partilhadas) e comboios diários desde Chișinău, a capital da Moldávia, e desde Odessa, na Ucrânia. Alguns agentes da autoridade da Transnístria podem tentar algum tipo de extorsão ou suborno à entrada, ao estilo KGB. Deves recusar pagar, de forma educada mas firme, mostrando cópias dos teus documentos.
Caso entres no território através da Ucrânia e tentes continuar viagem pela Moldávia, podes encontrar problemas com as autoridades de imigração, que poderão considerar que entraste de forma ilegal. Entrando pela Moldávia à partida não tens problema em seguir viagem para qualquer dos 2 países.
Abecásia
A Abecásia é um dos dois países não reconhecidos que se situam no território que a ONU reconhece como pertencente à Geórgia. A capital é Sokhumi e o país tem sua própria moeda e idioma, além de aceitar rublos russos e entender os idiomas russo e georgiano.
A independência do território apenas é reconhecida por seis estados-membros da ONU (Rússia, Nauru, Vanuatu, Tuvalu, Nicarágua e Venezuela) e outros três estados auto-proclamados e não-reconhecidos (Transnístria, Artsaque e Ossétia do Sul).

Lago Ritsa, Abecásia (Créditos: Mari_555)
Como chegar? Apesar do fim do conflito russo-georgiano em 2008, muitos governos continuam a desaconselhar a visita deste território, devido ao perigo das minas e outro material de guerra por desactivar. Dito isto, a regra é entrar e sair da região pelo mesmo país onde se entra: Rússia ou Geórgia.
Desde a Rússia, a capital Sucumi pode ser visitada via comboio, autocarro ou marshrutkas. Nesta zona encontra-se também o único aeroporto da região, que continua sem vôos por motivos políticos. Desde Sochi também é possível viajar por via marítima até Gagra, mas isso implica um pouco mais de logística e um risco acrescido de problemas com a polícia costeira Georgiana.
Ossétia do Sul
A Ossétia do Sul é outro território disputado dentro do que a ONU designa como parte da Geórgia, mas sob controlo (alguns dirão “ocupação”) da Rússia. Tem uma população de pouco mais de 50.000 habitantes e a capital é Tskhinvali.
A Ossétia do Sul declarou independência da Geórgia em 1991, que se recusou a conceder-lhe qualquer tipo de autonomia, o que provocou a guerra de 1991/92. Desde então, a independência do território apenas é reconhecida por cinco estados-membros da ONU (Rússia, Nauru, Síria, Nicarágua e Venezuela) e outros três estados auto-proclamados e não-reconhecidos (Transnístria, Artsaque e Abecásia).

Bandeira da Ossétia do Sul
Como chegar? Apesar do fim do conflito russo-georgiano em 2008, muitos governos continuam a desaconselhar a visita deste território, devido ao perigo de terrorismo, minas e outro material de guerra por desactivar.
A entrada na Ossétia do Sul é feita apenas pelo lado da Rússia, via Vladikavkaz. Daí existem autocarros que atravessam uma estrada de montanha, passando pelo Túnel Roki; do outro lado do túnel fica a Ossétia do Sul. Com excepção dos cidadãos russos, é aconselhável contratar os serviços de um guia ou operador turístico, que dirá as coisas certas e pagará às pessoas certas na hora certa. Caso contrário ficarás à mercê das autoridades russas e da sua vontade de permitir ou não a passagem pelo túnel.
Artsaque (Nagorno-Karabakh)
Depois da terrível Guerra de Carabaque em 1994, as Nações Unidas ficaram com um problema em mãos: como reconhecer um grupo de cristãos arménios, cujo território se encontra dentro da fronteira e, portanto, reivindicado pelo Azerbaijão? Com a falta de uma resposta para esta questão nasceu o Alto Carabaque (“Nagorno-Karabakh”) ou, oficialmente, a República de Artsaque.
O território existiu assim numa espécie de limbo até 2020, quando o Azerbaijão recuperou boa parte do seu controlo. Além dos outros estados-membros da ONU, e apesar de dar apoio económico e militar, a Arménia nunca reconheceu a independência da região. Isto acontece apenas com outros três estados auto-proclamados e não-reconhecidos (Transnístria, Abkhazia e Ossétia do Sul).

Monumento “We Are Our Mountains” (Créditos: tatyanakoltsova)
Como chegar? Apesar do cessar-fogo em vigor desde 10 de Novembro, esta continua a ser uma zona de guerra, que exige cuidado máximo, ao ponto de muitos governos desaconselharem a sua visita.
Anteriormente a entrada apenas era possível através da fronteira Arménia (viajando numa marshrutka desde Yerevan, Sisian ou Goris). Embora isso seja considerado ilegal pelo Azerbaijão – a presença de um carimbo Carabaque no passaporte é garantia quase certa de problemas ali. O único aeroporto da região fica na capital Stepanakert, que continua sem vôos por motivos políticos.
Kosovo
O mais jovem país europeu encontra-se em pleno coração dos Balcãs e cativa os visitantes com os seus mosteiros medievais, itinerários de caminhada, aventura na natureza e charmosas vilas na montanha. Pristina tem-se transformado numa das capitais mais vibrantes da região, tanto de dia como de noite.
De etnia maioritariamente albanesa, o Kosovo declarou a sua independência da Sérvia em 2008. É actualmente reconhecido por 98 dos estados-membros da ONU e 3 estados observadores (Taiwan, as Ilhas Cook e Niue). Pelo menos quinze outros membros da ONU reconheceram o Kosovo e posteriormente reverteram essa decisão.

Prizren, uma cidade pertencente ao Kosovo (Créditos: mesuttoker)
Como chegar? As formas mais utilizadas são o aeroporto internacional da capital Pristina ou a fronteira terrestre com a Macedónia do Norte (Skopje fica a apenas 1h30 de distância).
Caso pretendas continuar viagem para a Sérvia, atravessando a fronteira norte do Kosovo, então obrigatoriamente deves entrar pela Sérvia (obtendo o carimbo de entrada no país) e não pelo aeroporto de Pristina ou qualquer um dos países vizinhos.
Saara Ocidental
O Saara Ocidental é um grande território disputado na região do Magrebe, no noroeste de África. Possui bandeira própria e fronteiras reivindicadas e é controlada conjuntamente pela autoproclamada República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e por Marrocos. Faz parte do Deserto do Saara e tem fronteiras com a Argélia e Mauritânia.
A população do país é de pouco mais de 500.000, dos quais uma parte significativa vive em Laiune, a sua maior cidade. A RASD está na lista das Nações Unidas de territórios não autónomos desde 1963, após um pedido do Marrocos. A dada altura a região também foi uma colónia do Reino Espanhol.

Mapa do Saara Ocidental
Como chegar? Existe um aeroporto em Laiune com ligações a Marrocos e Espanha. Desde Janeiro de 2021 existe também uma ligação entre Dakhla e Paris. Atravessar o Saara Ocidental por terra entre Marrocos e a Mauritânia normalmente é possível. No entanto, especialmente durante períodos de conflito político, a entrada pode ser recusada sem aviso prévio ou razão aparente.
Os requisitos oficiais de entrada para áreas controladas pela RASD (conhecida como “Berm”) não são claros mas, na prática, a região não está receptiva a visitantes. Do lado controlado por Marrocos está fortemente protegida e minada; a fronteira terrestre com a Argélia está fechada; e também não há passagens de fronteira legais da Mauritânia para o território controlado pela RASD.
Norte do Chipre
A ilha de Chipre tem uma história complexa que resultou, desde 1974, numa divisão em duas partes completamente separadas: a parte sul Grega (oficialmente República de Chipre, cerca de 60%) e a parte norte Turca (oficialmente República Turca de Chipre do Norte, cerca de 35%). Os 5% restantes estão sob o controlo militar da ONU e do Reino Unido.
Nicósia é uma das últimas capitais divididas do mundo e a principal porta de entrada na parte norte. Sendo que a Turquia controla e é o único país a reconhecer este território, a moeda (lira), língua (turco) e religião (muçulmana) são as mesmas. Por oposição, na “parte europeia”, usa-se o euro, fala-se grego e a religião é predominantemente católica ortodoxa.

Bandeiras do Norte do Chipre lado a lado com bandeiras turcas. (Créditos: Adam Jones)
Como chegar? O antigo aeroporto de Nicósia encontra-se desactivado e abandonado. Por ser um território apenas reconhecido pela Turquia, o aeroporto Ercan opera exclusivamente com ligação exclusiva aquele país, sendo considerado ilegal pela IATA. Isto significa que ao utilizar esse aeroporto para entrar na ilha, terás obrigatoriamente de sair de novo pela Turquia (o que também é possível por barco).
Cidadãos europeus que tenham dado entrada na ilha pela parte sul (Grega) estão autorizados a visitar a parte norte. Não-europeus podem encontrar algumas dificuldades adicionais para passar os checkpoints e qualquer turista que tenha entrado pela parte norte pode ser detido e deportado na parte sul, em virtude da sua entrada “ilegal”.
Ordem de Malta
Um dos “quase-países” mais incomuns do mundo é a Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta (ou simplesmente Ordem de Malta, ou Cavaleiros Hospitalários). Esta não deve ser confundida com a República de Malta, na ilha com o mesmo nome. É uma ordem antiga (com inícios no séc. XII), que tem sua própria bandeira, carimbos, moeda e é até reconhecida por mais de 100 países da ONU.
Existe apenas um “probleminha”: a Ordem não tem território oficial, nem sequer sede no país que lhe empresta o nome, mas sim num prédio alugado em Roma (e seu jardim), ocupando uns singelos 6 km². Ainda assim, a ordem tem um contracto de arrendamento de 99 anos no Forte de Santo Ângelo, na ilha de Malta.

Selos da Ordem Soberana e Militar de Malta (Créditos: Jonny Blair)
Como chegar? À falta de território oficial para visitar, o mais simples é ir até ao Forte de Santo Ângelo na ilha de Malta e organizar uma excursão privada ao alojamento de um dos Cavaleiros da Soberana Ordem Militar de Malta, no Forte Superior.
Somalilândia
A Somalilândia é um Estado reconhecido internacionalmente (de jure) como uma região autónoma da Somália, mas que passou a ser efectivamente (de facto) um estado independente em 1991. A região declarou unilateralmente a sua independência, alegando ser o sucessor do Estado da Somalilândia (um estado que existiu durante 5 dias em 1960, entre a independência do Protectorado da Somalilândia Britânica e a formação da República da Somália).
Este destino, visto quase como “anti turístico” por algumas pessoas, pode surpreender-te com fantásticas praias desertas, movimentados mercados locais, pinturas rupestres e paisagens deslumbrantes. Mas é sem dúvida, como quase sempre nos locais pouco explorados pelo turismo, o povo somali que torna este lugar tão especial, graças à sua inesgotável hospitalidade.

Acampamento de pescadores na Somalilândia. (Créditos: YoTuT)
Como chegar? Muitos governos ocidentais desaconselham fortemente a visita deste território, devido ao perigo real de crime violento, como sequestro e assassinato. Se ainda assim decidires assumir a responsabilidade de visitar o território, deves obter um visto de entrada para a Somalilândia. Os vistos da Somália não são aceites. O governo da Somalilândia exige que todos os estrangeiros levem guardas armados quando viajarem para fora das grandes cidades.
Há um aeroporto internacional em Hargeisa e outro em Berbera com muitos voos internacionais, principalmente para Dubai. Alguns ‘voos’ de Hargeisa começam com uma viagem de autocarro para Berbera. A entrada por terra não é possível pela Somália. A alternativa é viajar desde a Etiópia, ou pela fronteira ao norte com Djibouti. A viagem faz -se numa viatura 4×4 pelo deserto. Se ao longo da estrada encontrares pedras coloridas, não saias do asfalto – as minas terrestres ainda estão activas.
Liberland
Liberland, oficialmente a República Livre de Liberland, é uma micronação que reivindica uma parcela desabitada de terras disputadas na margem ocidental do Danúbio, entre a Croácia e a Sérvia, localmente conhecida como Gornja Siga ou Siga. Com 7 km² de área, é maior do que os dois mais pequenos estados soberanos do planeta: a Cidade do Vaticano e o Mónaco.
A micronação foi proclamada em 13 de Abril de 2015 por um activista político libertário de direita checo, e tem apenas o apoio informal da também não reconhecida Somalilândia.
Como chegar? A forma mais simples de visitar o território é contactando a Associação de Colonização de Liberland (LSA) que é capaz de fornecer as informações mais recentes sobre o acesso e ajudar com a burocracia inerente.
O aeroporto mais próximo situa-se em Osijek (Croácia), de onde é possível apanhar um autocarro até Zmajevac e daí tentar chegar de carro a Liberland. No entanto convém notar que a travessia para Liberland é frequentemente impedida pelos guardas fronteiriços croatas. O mesmo é válido para qualquer travessia de barco pelo rio Danúbio.
Sealand
O último “quase-país” desta lista é bastante peculiar por ter sido criado artificialmente pelo homem e não pela natureza . O Principado de Sealand é um pioneiro no mundo das micronações, estando localizado desde 1967 no Mar do Norte, numa grande base naval construída pelo Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial, a apenas 12 quilómetros da costa sudoeste de Inglaterra.
Sealand não é actualmente reconhecida oficialmente como um estado soberano por nenhuma outra nação. Ainda assim, o “país” tem as suas próprias moedas, notas, bandeira, príncipe, passaportes e selecção nacional de futebol!
Sem áreas cultiváveis, indústria florescente ou abundância de recursos naturais, a nação de aço e cimento tem PIB avaliado em US$ 600 mil, obtido “em sua maior parte por meio de comércio na internet”, em virtude da sua pouquíssima regulação.

(Créditos: Ryan Lackey)
Como chegar? O acesso a Sealand pode ser feito por barco ou helicóptero, mas todas as visitas – independentemente da sua duração – carecem de consentimento prévio. Na maior parte das vezes os pedidos de visita de turistas são recusados. A alternativa é tornares-te num Lorde de Sealand, comprando o título nobre no web site e enviando um e-mail ao príncipe, na esperança de que ele te convide para um chá.
Aventura-te e ruma ao desconhecido com a The Wanderlust!