Às vezes, digo que a minha última quarentena durou 9 meses. Digo na brincadeira, mas o isolamento é assunto sério. Distanciamento social, restrições de movimento e acesso a lugares, incerteza, ansiedade, aborrecimento e tristeza. Estes são pontos comuns entre a atual quarentena mundial e aquela que vivi, ironicamente, em viagem. Mas foram também essas experiências na floresta da República Democrática do Congo que me tornaram um melhor viajante.
Quando se pretende estudar animais selvagens, as condições no campo são, por vezes, espartanas. No Congo, a comida tinha de ser racionada. Moscas tsé-tsé, aranhas gigantes e formigas carnívoras faziam da minha cabana também a sua casa. Os dias repetiam-se, quase sem surpresas, sob um calor bárbaro. A aldeia mais próxima ficava a 5 horas de distância. Visitá-la envolvia uma aterradora ginástica logística entre rios e pântanos. Estas são coisas esperadas quando se vai trabalhar para a floresta. O que pode ser surpresa é o gradual deterioramento que sentimos, pela falta de contacto social.

Acampamento onde passei a minha primeira quarentena, na floresta do Congo.
Para falar com o resto do mundo, haviam duas opções. A primeira, o telefone de satélite, onde cada chamada custava 6 dólares ao minuto. A segunda, o Pactor, uma máquina que envia mensagens, convertendo o sinal digital do computador em ondas de rádio. Monetariamente mais acessível, este tem, no entanto, algumas limitações. Para enviar o sinal de rádio, o Pactor está dependente de condições meteorológicas e das condições da Camada D da ionosfera (uma das “subcamadas” da atmosfera), por sua vez dependente de ventos solares. Assim, enviar uma mensagem é um processo demoroso de tentativa e erro. Em meses bons, enviar e receber uma resposta pode levar uma semana. Quer através de satélite ou ondas rádio, ter um contacto diário com aqueles que nos são mais próximos e mais queridos, é virtualmente impossível. Para piorar a situação de isolamento, a equipa de investigadores com quem trabalhava foi gradualmente diminuindo, à medida que os contratos terminavam. Assim, nos meus últimos 4 meses de trabalho, partilhei o acampamento apenas com os 4 guias locais. Ainda que tenha criado laços de confiança e amizade com eles, é inocência pensar que a solidão se cura apenas com contacto humano.
A dada altura, a repetição de dias, caras, conversas, a impossibilidade de sair do mesmo lugar, a falta de uma voz acolhedora e todos os constrangimentos à minha liberdade e confortos, criaram uma inevitável sensação de claustrofobia. Não foi sem contratempos que encarei aqueles 4 meses onde floresciam alguns sentimentos mais infelizes, mas, por fim, acabei por encontrar os ensinamentos valiosos que viria a utilizar nos meus dias de quarentena em Portugal.
Sempre acreditei que o Tempo é coisa mais importante que temos na vida. É a nossa única e verdadeira moeda de troca. No final, é aquilo que fazemos com ele que realmente importa. Com isto em mente, virei a situação a meu favor e aproveitei a minha “quarentena” na floresta, o isolamento e as restrições para me cultivar e buscar uma melhor versão de mim mesmo: aprendi línguas novas (Francês e Lingala); escrevi diários; fiz bricolage no acampamento, mudando telhados de palmeira e abrindo caminhos; e li livros que, em casa, não tive tempo de ler. Em última análise, quando nada parecia certo ou seguro, decidi que baixar os braços seria uma perda de tempo precioso. Como tudo, também o meu contrato acabaria um dia e eu voltaria a casa. Até lá, agarraria a vida com unhas e dentes.

Um dos locais onde era possível abrigar-me do calor extremo.
Esta perspetiva acerca do Tempo levou-me a outro ensinamento: a melhor qualidade de um viajante não é a urgência em partir, nem o sentimento de liberdade, mas sim a sua adaptabilidade. Os melhores viajantes que conheço são pessoas altamente harmonizáveis ao mundo. Por isso, conseguem beber chá, tanto nos subúrbios de Aqaba, como às 5 da tarde em Londres, sem que isso lhes perturbe o espírito. Exímios no exercício da compreensão e da espera, que tiram o melhor partido do momento que lhes é dado. Por isso, esperam que a tempestade passe, antes de continuar a subir uma montanha (literalmente).
Quando, em Outubro de 2019, voltei a Portugal, pus-me avidamente a par de todas as comidas, filmes, séries, livros e viagens que perdera durante 9 meses. Pensei que muito dificilmente passaria de novo por uma situação em que as minhas liberdades e confortos estariam tão limitados. Hoje, enquanto escrevo estas linhas, o mundo inteiro está numa situação de isolamento, limitado nas suas liberdades e incerto. E eu, voltei a estar numa situação semelhante à do Congo.
De novo, senti a claustrofobia e algumas das inseguranças e medos de antes. De novo, vi também a oportunidade de pôr à prova a minha adaptabilidade, harmonizando-me com o mundo e fazendo uso de um Tempo que, à primeira vista, parece inerte. Em quarentena, aprendo línguas novas, leio sobre países e lugares a visitar, escrevo propostas para novas expedições. Bebo chá em casa, mas sonho com o Mar Vermelho. A cada dia que passa, ainda que isolado e cativo, a próxima viagem parece-me mais próxima que nunca.
No entanto, há coisas que mudaram entre uma experiência e a outra: hoje, em vez de me deitar numa tenda abafada a ler, posso sentar-me no sofá, beber café e ler notícias e artigos online; posso ligar à minha família e amigos a qualquer hora (e a preços mais acessíveis); quando terminar este texto posso enviá-lo, sabendo que será recebido no momento seguinte pelo meu destinatário; a qualquer momento descarrego virtualmente qualquer filme ou música produzidos. De certa maneira, e apesar de tudo, isso é um privilégio.
Seja esta, ou não, a primeira vez que nos vemos isolados e aprisionados, a verdade é que não é uma experiência fácil. Cada um de nós terá os seus mecanismos para enfrentar os dias que parecem arrastarem-se para sempre. Mas nada no universo dura tanto tempo. Apesar da sombra que acompanha a palavra quarentena, também ela está sujeita às leis que regem o Cosmos. O que hoje parece tão insuportável e rarefeito, também terá um fim. Um dia, a insustentável leveza da quarentena será apenas uma memória. Quando esse dia chegar, certamente, cada um de nós terá histórias, como esta, para contar, e novas perspectivas acerca do futuro e de si mesmo. Mas seja qual for o resultado individual, espero que, como aqueles que esperaram que o tempo melhorasse para subirem a montanha, também nós, quando sairmos de casa, possamos seguir o nosso caminho, sendo melhores viajantes.
Aventura-te e ruma ao desconhecido com a The Wanderlust!
Todas as fotografias são da autoria de Wilson Vieira